sábado, 31 de julho de 2021

Caracol

Passei por castelos de areia
e seus desdobramentos de sol e ar.
E de tanto olhar comecei a perceber:
Mirava sonhos de quinhentos anos atrás.

-Quantos homens, e carruagens, estrelas e pó!
                                              (Praia deserta, pálida e tão dolorida!)

Eram ouvidos e ombros já retorcidos.
Ritmos de marcha e ruídos; 
que viravam silêncio e um ninar de fim de noite.

O que eu não ouvi? E por onde os tímpanos e cócleas passaram
que deixei para trás tantos séculos de música do mundo perdida?

-Praia deserta, pálida e tão dolorida!
Por quanto tempo chamei de vento o que é a vida?

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Vagalumes

Há vagalumes pelos campos
em que antes eram apenas negras flores.
Se perguntarem do menino das rosas
digas: -Já não tem mais dores.

Já não caminha olhando para o céu.
Este que cresceu nos sóis e montanhas.
E dirás -Que queria este da vida de fato?
E trarás sempre mais dúvidas tamanhas:

-És feito de rosa? Nasceste por que lugares? 
Comes que alimentos? Vives de que ares?
És eterno como a terra e pedras?
Tens amigos, amantes ou pares? 

E ele, pequenino, responderá assim isento:
-Talvez morra de velhice, ou de acidente.
E quem vocês querem que diga não se dirá
Pois não se forma aqui, nem no presente.

E com a natureza faz a troca sensata:
O sol se põe ao longe sozinho
E o ramo cresce igual no seu acontecimento:
É como o menino faz com seu espinho.

Mas deram-lhe cores, traços e aromas
E assim acabará em cores, traços e aromas.
O menino das rosas traz consigo o perfume
que tem um pouco de todos os idiomas.

Já não clama, e pelos ares canta
O império ou o desalinho dos amores.
Se perguntarem do menino das rosas
digas: -Já não tem mais dores.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Encontro

Fragilidade pura implacável 

da pena.

Voa, pausa e se desfaz

numa cena.


Gesto lançado, rendido

e exato.

Aceno rarefeito

do ato.


Diáfana nuvem chuvosa

da vida.

Palavra escrita, lida

mas partida.




segunda-feira, 19 de julho de 2021

Afinação

Sóis de aspectos e vínculos

altitudes do entrever.


Espectros de almas em círculos

erguendo degraus do ser.


sábado, 10 de julho de 2021

Confissão

Breve, isento, num salto...
lá vai o gato subir pelo alto.

Com focinhos e patinhas, é de fácil decreto...
onde andem, onde pulem, há afeto.

Quando arranha o estofado, se assinala o felino...
Mas haja talvez dentro, um coração de menino.

Ser humano, ou animal me parece ainda mundano...
e o amor se sublima desta terra, deste plano.

Triste ou não, assimilo ser um fato...
Ser mais fácil dar amor a um gato.




sexta-feira, 2 de julho de 2021

Tento-me a pensar que tenho dois rostos

Tento-me a pensar que tenho dois rostos.

Um que foi meu assim que nascí, e outro 

Com traços mutáveis, perdido em todo lugar.

-Te procuro!


Já se foram muitas noites, dias, manhãs,

e quantas nem me dei conta!

Meus rostos: -um sem sentido, outro sem maçãs,

que meu ser a buscar remonta.


Sempre que saio a ver as criaturas

puxa-se uma linha nas sobrancelhas 

Outra retrai e move as rachaduras

da testa, dos olhos, das orelhas.


Um rosto trança o outro.

Este o devolve o revés.

Tenho um rosto que transmuta 

Para que eu possa ver através.


Qual deles uso hoje

Pra mostrar-lhes a minha face?

Ambos se tecem na difícil trama

e se embolam no prisma do lace.


Tento-me a pensar que tenho dois rostos.

Um que foi meu assim que nascí, e outro 

Com traços mutáveis, perdido em todo lugar.

-Te procuro!

Retrato

Nada é pronto. O fruto antes precisa ser flor e antes semente. A música são antes apenas notas singulares. O que me chama ainda atenção são ...