segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Acaricio a era em que vivo

Acaricio a era em que vivo
deslizando na seda os meus dedos encarnados.
Sussurrando palavras deste tempo
que vieram de tão longe
e ainda continuarão por tanto.
Até que espetáculos se formem 
da vaga garganta cansada, efêmera, fresca,
Para comporem novos idiomas e bocas,
e civilizações.
E voarão pela voz de lábios ainda quentes:
Apenas o que fica ainda são, neles, 
os teus lábios.



quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Violino

Ouvidos largos
coração fino.
Só o que passa
é o som do violino.

Xeque-mate

Agarrei meu punhal de ferro
e fui à guerra em combate.
Tinham guerreiros de vis impérios
aguardando meu abate.
Na estratégia da palavra
Fui isento de um empate.
Lhe trouxe íntegro o poema:
Cheque-mate!

Chinelo

Um desalento do acaso
é procurar seu chinelo
e ver que ele não tem mais par.

Mas ver que era o atraso
que te fez ver que o elo
não se queria encontrar.

Esparadrapo

No dedo que aponta
e julga,
entra sempre 
um fiapo.

Existe uma dita 
cura:
Pedir desculpa 
é esparadrapo.

Mozart

Certo dia alguém morreu
e um canto triste se ascendeu.

Como uma chuva invertida
molhando uma terra fluída.

Mas seu véu a morte rompeu!

E num coro de Mozart atingida
O Réquiem de uma vida
gota a gota o reviveu.

Essa é a história desmedida
Em que o morto que vive 
sou eu.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Espelho

Pintar, cantar, dançar, são maneiras 
de se verem os reflexos.
A arte é o espelho que dos deixa 
melhores, mais bonitos e mais complexos.

Perene

Chamei pelo canto, 
mas veio-me o vento.

Num gesto de ausência,
perpétuo e solene.

E ouvindo-me tanto
clamar o alento,

Num ar de clemência
e apreço perene,

Cessou-me o pranto
um violão todo isento.

Nutrido de essência,
no cerne do gene.

Porta

O futuro é uma porta fechada,
com a chave na fechadura.
Roda a chave, entra e celebra:
És agora quem mais um segundo inaugura!

Espacate

Áureo instante
de incontável quilate.
Elástica a bailarina
abre seu espacate.

Briófita

Vozes ermas de sonho e reino
de um mundo orgânico que cresce e propaga
Rompem verdes olhos e infinitos fractais:
Briófitas são pequenos palácios de quem divaga.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Noite pura que a alma espera

Noite pura que a alma espera,
tênue, de partida e chegada,
Surdina antiga, clara e sincera
Instruída, firme e encantada.

Na varanda de espírito adornada,
Noite pura que a alma espera,
Adormece as flores e intocada
ri-se, suspira e regenera.

Contos distantes de lua e atmosfera
Fluem-me o pensamento e a estada. 
Noite pura que a alma espera,
És quietude a este homem e esta estrada.

Faz-se mais humana e tão encarnada
Quanto meu corpo que a ti esmera
Existes só e não é preciso mais nada,
Noite pura que a alma espera!

domingo, 1 de agosto de 2021

Geometria transversal

Ás vezes não sei porquê amo ou odeio.
Tudo são como curvas secretas de um oblíquo polígono encarnado.
E das névoas dos instantes resta-me ser névoa.
Quando sinto meus lutos de prata, sou luto de prata.
Converto-me no meu sentimento e ainda digo-o que seja eu.
Assim tornei-me sem precedentes, 
conservando a força da transfiguração.
Para quando sentir-me morrer, 
escavar em mim o lapso que projeta e contempla esta passagem.



Retrato

Nada é pronto. O fruto antes precisa ser flor e antes semente. A música são antes apenas notas singulares. O que me chama ainda atenção são ...